No último dia 30 de maio, foi lançada uma inscrição aberta a artistas e curadores solicitando “projetos rejeitados”. Esse anúncio circulou na internet durante as duas semanas que precederam a abertura oficial da 50ª Bienal de Veneza, pedindo que fosse disseminado ao maior número de destinatários e prometendo que integrariam uma ação não-oficial nos dias de abertura do evento.
O organismo que promoveu essa convocação chama-se “24/7″ e se define como uma galeria “móvel e mutante, com orçamento baixo”. Uma vez desencadeada a chamada, seus responsáveis contam que sentaram para esperar as respostas: “Até o dia 11 de junho às 14h34, hora de Londres, recebemos em torno de 50 projetos”. Nenhum envio brasileiro foi registrado.
Essa Bienal, com curadoria geral de Francesco Bonami, foi organizada em torno de uma vontade: restituir à arte a supremacia do olhar do público. O título “Sonhos e Conflitos”, acrescido do contra-rótulo “A ditadura do espectador”, sugere uma resistência à mão pesada dos curadores. Aberta até o dia 2 de novembro, a presente edição da Bienal de Veneza anuncia sua vinda sob o estandarte da oposição à tendência que caracterizou o sistema artístico contemporâneo desde os anos 80, consistindo na imposição da visada do crítico sobre seu objeto.
O autoritarismo explícito na palavra “ditadura” é mais uma dessas metáforas militares que ainda assolam um certo discurso vanguardista da arte. Mas, isolando o hiperbolismo do tom, que poder o espectador consegue efetivamente exercer hoje? Certamente, Veneza não se configura como lugar experimental; certamente, essa suposta supremacia deferida ao espectador tampouco pretende agregar valor ao sentido de participação do sujeito.
Entre nós, isso foi teorizado em 1967 por Hélio Oiticica para a vanguarda brasileira, no texto “Esquema geral da Nova Objetividade”, justamente em meio a um governo apoiado por forças armadas. Já as reivindicações européia e norte-americana recaem sobre o controle opressivo e a política de censura das instituições artísticas. Para citar apenas uma referência histórica, ler o artigo de Robert Morris, “The Art of Existence. Three Extra-Visual Artists: Works in Process” (1971).
Em suma, eis as margens históricas dentro das quais essa Bienal definiu território. É interessante portanto analisar o teor propositivo do grupo “24/7″ no contexto de uma rediscussão da chamada “recepção da obra”, fazendo uma outra substituição: “a ditadura do artista”. Cabe registrar o sugestivo nome de seu site na internet: http://www.24-7bombthemuseum.org/.
A reunião de todos os contrapontos mencionados reflete o sabor do nosso tempo: a inserção dos excluídos dentro de um circuito com circulação própria. Mas quê circuito é este e como um apelo coletivo à participação pode temperar os valores conservadores que regem a mais tradicional exposição, são algumas questões que caracterizam o estado atual da arte.
Sediada em Londres desde 2002, “24/7″ é dirigida por Pablo León de la Barra, Beatriz Lopez e Sebastian Ramirez. Sabe-se, e esse dado não pode ser menosprezado, que sua plataforma atende exclusivamente jovens artistas latino-americanos. Stefan Brüggemann, Carolina Caycedo, Manuela Vieira-Gallo, Silverio e Carlos Amorales, são alguns dos participantes que ofereceram projetos, sempre em situações pontuais e efêmeras, driblando as expectativas de duração de uma mostra de arte. Os trabalhos, com uma certa tônica para o espetáculo, mesclam ingredientes indispensáveis para compreender o que quer a arte contemporânea, isto é: expor estratégias que regulam o sistema artístico, dos mecanismos de produção à sua exibição, ou, para continuar surrando o chavão, fazer crítica institucional.
Cabe refletir se a própria estratégia desse tipo de proposição já não determina, de saída, a natureza dos envios. Para os integrantes de “24/7″, as respostas da ação veneziana ganharam sintaxe de enquete, o conjunto dos projetos recebidos valendo-se de “diagnóstico” da situação atual: “Alguns dos projetos haviam claramente sido desqualificados em função de sua baixa qualidade, outros pareciam interessantes dentro de um contexto particular, mas não eram relevantes para a linha de trabalho implantada por ‘24/7’ (eram destinados a espaços ideais, com pretensões para ser ‘arte elevada’, ou usavam o discurso seguro do politicamente correto)”.
O fator irônico é que esses envios passaram por um outro crivo seletivo, uma vez que “24/7″ se reservou o direito de julgar quais os projetos seriam fotocopiados para serem distribuídos em mãos pelas ruelas de Veneza a visitantes que oscilaram entre a mais absoluta indiferença e um fervoroso entusiasmo diante da iniciativa.
Segundo seus organizadores, “Projetos rejeitados/projetos não-solicitados” não repete o figurino situacionista pois não fora concebido como um lugar utópico onde tudo é possível e qualquer projeto é aceito: “Ao escolher e fingir agir como uma instituição no processo de seleção e não como uma fundação de caridade, esperamos tornar evidentes as falhas e fissuras existentes em ambos os lados dentro do sistema, as instituições e os produtores. O que fazer e o que não fazer dentro dos códigos estabelecidos dos espaços institucionalizados estão claros. O sistema se fecha em si mesmo para evitar ser criticado ou absorve a crítica e a normaliza. Os ‘projetos rejeitados’ que nós escolhemos atendiam uma perspectiva mais ‘terra-a-terra’. E propunham meios de produção mais realistas; projetos com estratégias semelhantes aos de nossa galeria sem orçamento. Deixamos o resto dos projetos às organizações ou instituições interessadas em outros conteúdos e/ou com orçamento para realizá-los”.
Mas o que chama atenção, e que mereceria uma reflexão em outra oportunidade, é o surgimento de um outro tipo de participação, geralmente coletiva e sob a chancela de associações virtuais. Tal reelaboração do papel do participante, frequentemente ligada a um ativismo político, vem transformando aos poucos a noção de “trabalho do artista” para um “trabalho imaterial”. Esse conceito, apresentado no livro “Império”, de Antonio Negri e Michael Hardt, permite articular um outro entendimento da ação do artista na sociedade: com o “poder comum de agir”, confere-se um novo sentido que aquele postulado nos anos 60 para a expectativa de “participação” na feitura da obra contemporânea.
Essa definição de trabalho, como escrevem Hardt e Negri, “está em relação contemporânea, co-extensiva e dinâmica com a construção da comunidade”. Por ora, me interessa cruzar o diagnóstico desses autores com as características funcionais da arte contemporânea, a saber: o surgimento de uma força de trabalho “envolvida em comunicação, cooperação, dedicação e reprodução de cuidados”. O dispositivo de trocas, recorrente nas práticas artísticas contemporâneas, foi mediado, no caso da proposição de “24/7″, pelo objeto que melhor simboliza a assimetria do sistema artística: um projeto recusado.
Afinal, qual foi o “trabalho” do grupo “24/7″, a não ser esperar o trabalho do outro, viver da vontade de circulação dos projetos recusados? Estamos bem distantes agora do que pretendia Bonami colocando par a par sonho e conflito, ditadura e espectador.
Lisette Lagnado
É crítica de arte e curadora independente, coordenadora do Arquivo Hélio Oiticica (Projeto HO e Instituto Itaú Cultural), autora de “Leonilson – São Tantas as Verdades” (DBA) e editora de Trópico e da seção “Em Obras”.
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